Cada vez mais o agronegócio tem se destacado como setor de suma importância para a economia brasileira, fato que, sem dúvida, coloca a atividade agrária, bem como toda cadeia agroindustrial em voga, especialmente em razão da latente geração de renda, empregos, em posição relevante no Produto Interno Bruto – PIB nacional. Neste diapasão, os contratos agrários ou aqueles resultantes de operações na cadeia agroindustrial, entendidos como instrumentos que selam o vínculo jurídico ou a relação jurídica entre contratantes e terceiros visando criar, modificar ou extinguir obrigações, tonam-se passíveis de discussão mais acentuadas, visto que ao tutelar ou selar vínculos jurídicos no âmbito das obrigações e ambiente econômico podem sofrer distorções em razão do inadimplemento ou mudanças fáticas, objetivas ou subjetivas na relação subjacente, bem como em razão do duplo risco da atividade agrária – risco econômico e agrobiológico – o que denota a atuação do Poder Judiciário ou resolução via métodos alternativos de resolução de conflitos para pacificação dos conflitos neste importante segmento. Visando trazer elementos teóricos e práticos a respeito de relevante relação agrária, qual seja, o complexo soja, o presente artigo buscou trazer à baila breve panorama sobre a judicialização de contratos de venda futura da safra de soja 2003/2004, bem como as tentativas de resolução contratual na safra de soja 2020/2021, e, por fim, o entendimento jurisprudencial dos litígios submetidos ao poder judiciário pátrio para entendimento da controvérsia. Portanto, nesta sequência, far-se-á uma breve comparação relacionada aos fundamentos judiciais em relação à quebra de contratos de venda futura da safra de soja 2003/2004, frente aos fundamentos utilizados nas tentativas de resolução contratual na safra de soja 2020/2021, tendo em vista que em ambas as safras os preços da commodity atingiu patamares históricos e, coincidentemente ou não, em períodos que ocorreram fenômenos inéditos como a assolação da “ferrugem asiática” e a pandemia derivada da Sars-Cov-02, vulgarmente conhecida como Covid-19.
Inicialmente, fato de suma importância para complexo soja, cumpre mencionar evento ocorrido na safra de soja 2002/03, resultante da infestação do fungo “phakopsora pachyrhizi” popularmente denominado como ferrugem asiática, qual foi identificada pela primeira vez no Brasil no ano de 2001, segundo apontamentos do EMBRAPA, resultado do risco agrobiológico da atividade. Em síntese, o fenômeno consiste em uma doença que é considerada a mais severa da cultura da soja, podendo resultar em perdas de até 90% da produtividade se não houver monitoramento e controle adequado, conforme afirma a EMBRAPA. Sucede-se que, conforme estudos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, na safra de soja 2002/03 a ferrugem asiática atingiu mais de 90% da área de produção do Brasil, causando perdas estimadas em mais de 3,3 milhões de toneladas ou o equivalente a US$ 737,4 milhões (US$223,50/t).Dentre o fator supramencionado, a aquecida demanda mundial pela commodity e demais fatores, ocasionaram a demasiada elevação do preço da soja para a safra de 2003/04, resultando no ajuizamento de excessivas demandas judiciais – que, em sua pluralidade, tratam-se de produtores rurais, buscando a resolução (extinção) dos contratos de venda futura por razões diversas, tais como a ferrugem asiática, oscilações climáticas e alteração inabitual nos preços de venda da soja, assim, visando a exoneração da obrigação inicialmente assumida e, por conseguinte, ensejando a possibilidade de negociar a respectiva produção a preços mais vantajosos em face dos lucros excessivos que os credores, em tese, compreenderiam. Nesta perspectiva, seguindo o proposto, cabe apresentar as decisões e os fundamentos aplicados em pareceres jurídicos mais favoráveis aos produtores à época das disputas judiciais, bem como demonstrar acórdãos contrários, a fim de transparecer as controvérsias dos Tribunais, de modo que posteriormente seja possível apresentar a maneira como a jurisprudência se desenvolveu, e finalmente alcançando a safra de 2020/2021 que teve como peculiaridade a pandemia desencadeada pela Sars-Cov-02.Na presente decisão verificada, denota-se que o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais manteve a sentença proferida em primeira instância, julgando procedente o pedido de resolução contratual por onerosidade excessiva, adequando-o ao preço de mercado e considerando-o quitado, consequentemente determinando o cancelamento das Cédulas de Produtor Rural, conforme os motivos que se leem na ementa:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL. ONEROSIDADE EXCESSIVA. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE SOJA A PREÇO FIXO PARA ENTREGA E PAGAMENTO FUTURO. "FERRUGEM ASIÁTICA". VARIAÇÃO NO PREÇO DA SOJA. EVENTOEXTRAORDINÁRIO E IMPREVISÍVEL. TEORIA DA IMPREVISÃO. ARTIGO 478, DO CÓDIGO CIVIL/2002. A superveniência de onerosidade excessiva do contrato de compra e venda de soja a preço fixo para entrega e pagamento futuro, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis referentes ao aumento abrupto do preço da soja e à grande incidência de "ferrugem asiática" na região, causando um desequilíbrio contratual com prejuízo para o produtor rural, autoriza a revisão ou mesmo resolução da avença celebrada, consoante disposição dos artigos 478, do Código Civil/2002. (TJMG, Apelação Cível 2.0000.00.515102-2/000(1), Relator: Des. José Flávio de Almeida, Data de Julgamento: 18/10/2005, Data de Publicação: 26/11/2005)
Em case semelhante, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás decidiu, igualmente aplicando o instituto da onerosidade excessiva ao produtor, sendo possível verificar nos seguintes termos:
VENDA A FUTURO. SOJA. PREÇO PRÉ-FIXADO. RESCISÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA. NULIDADE DA CEDULA DE PRODUTO RURAL. I – Ferido o princípio da equivalência contratual, sobretudo no que tange a boa-fé objetiva, face as desproporções das obrigações, a razão do contrato prescrever deveres tão-só ao vendedor (produtor rural), tal circunstância importa resolução do pacto ao teor do art. 478 do CC, por estar vislumbrada a onerosidade excessiva impingida a uma das partes. II – A essência da Cédula de Produto Rural é o crédito ao produtor rural. Se crédito não há, decerto que a emissão deste título resta eivada de mácula, mormente quanto a sua forma e finalidade, não havendo como validá-la, por refugir a sua espécie. APELAÇÃO CONHECIDA E PROVIDA.” (TJ-GO. Apelação Cível nº 73079-2/188 (200301836870). 1ª Câmara Cível. Relator: Des. Leobino Valente Chaves.DJ: 22/03/2004).
Denota-se que os fundamentos decisórios mencionam os institutos da boa-fé contratual, função social do contrato e equilíbrio econômico, sendo estes princípios erigidos pela nova teoria contratual, abarcados pelo Código Civil de 2002 – considerando que, à época, a norma legislativa do atual Código Civil Brasileiro vigorava de forma recente – e ainda, sendo possível vislumbrarmos que os principais fundamentos versam sobre a teoria da imprevisão e onerosidade excessiva. Por outro lado, há diversas decisões proferidas na mesma época, pelos mesmos Tribunais, defendendo a não aplicação da teoria da imprevisão, tampouco da onerosidade excessiva junto aos contratos futuros de soja, de modo que se fez necessário apresentar algumas destas no presente artigo. Prosseguindo, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás apresenta decisão contrária a resolução dos contratos de soja justificados em onerosidade excessiva, neste caso, reformando sentença anterior, e fundamentando, para tanto, a necessidade da ausência de interferência do Poder Judiciário nas relações contratuais para a resolução de contratos de compra e venda de produtos agrícolas, conforme pode ser observado na ementa abaixo:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTRATO C/C ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. PRESSUPOSTOS DE CONSTITUIÇÃO E DESENVOLVIMENTO VÁLIDO DO PROCESSO. PRESENÇA. PRELIMINAR REJEITADA. RESOLUÇÃO DO CONTRATO ANTE A SUA ONEROSIDADE EXCESSIVA FACE À ALTA DO DÓLAR. INOCORRÊNCIA.
1. Mostra-se inconsistente a proemial de ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido do processo, pois restam preenchidos todos os requisitos do art. 282, não havendo caracterização de qualquer das hipóteses elencadas no art. 295, ambos da Lei Processual Civil. 2. As modificações normais causadas pela oscilação do preço do produto na bolsa de mercadorias, em razão dos mais diversos fatores, não podem ser havidas como imprevistas por nenhuma das partes. Ao contrário disso, por ser um fato conhecido, que constantemente ocorre, no mercado interno e externo, constitui a razão de o produtor contratar, antecipadamente, a venda da colheita futura de soja, estabelecendo margem razoável de lucro, através da préfixação do preço, garantindo-se contra variações abruptas que trariam insegurança a sua atividade produtiva. 3. Não comprovados motivos que ensejasse a teoria da imprevisão, que contrariasse o princípio da boa-fé objetiva, que afrontasse o princípio da função social do contrato, que causasse lesão a um dos contratados, e nem a excessiva onerosidade para uma das partes, em detrimento do benefício da outra, é indevida a interferência do Poder Judiciário nas relações contratuais para a resolução de contratos de compra e venda de produtos agrícolas. 4. Recurso conhecido e provido. (TJ-GO. Apelação Cível nº 83122-9/188 (200402057656).4ª Câmara Cível. Rel.: Des. Almeida Branco. j. 23. 12. 2004. Data de Publicação: 27/01/2005).
Em outro caso equivalente, uma ação cível pesquisada no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais apreciou e deu provimento ao recurso de apelação em prol da manutenção do contrato de compra e venda futura de soja, qual inicialmente havia sido rescindido em sentença de primeiro grau, sob o fundamento da configuração de onerosidade excessiva ao produtor. No entanto, considerando, neste momento, demonstrar as decisões contrárias a resolução contratual, segue a sinopse ementaria das razões de provimento:
EMENTA: CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE MERCADORIA. OSCILAÇÃO DO PREÇO DA SOJA. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE. AUSÊNCIA DE CLÁUSULA ABUSIVA. RESCISÃO NÃO DECRETADA. A teoria da imprevisão ou o que se chama de cláusula rebus sic stantibus é o remédio jurídico destinado a sanar as anomalias decorrentes de eventos imprevisíveis e extraordinários, que venham a atingir a base negocial do contrato. A oscilação do preço da soja no mercado agrícola constitui fato previsível, notadamente quando os vendedores são produtores rurais, não autorizando a aplicação da teoria da imprevisão. Se o contrato de compra e venda de mercadoria não contém qualquer cláusula abusiva, impossível decretar sua rescisão. (TJ-MG. Apelação Cível nº10702041368896001. 14ª Câmara Cível. Rel.: Des. Renato Martins Jacob, DJ: 28/08/2008. Data de Publicação: 03/10/2008)
É possível observar que nos procedentes expostos não foram vislumbrados motivos que resultassem na aplicação da teoria da imprevisão por parte dos Tribunais, ainda que em decisões anteriores de primeira instância estivessem apreciados os institutos da onerosidade excessiva e da teoria da imprevisão, uma vez que foram fundamentados na oscilação do preço da commodity – igualmente os decretos de segundo grau citados no início deste tópico. Importa refletirmos que os presentes casos levados ao Judiciário aumentaram significativamente ao longo da safra de 2003/2004 principalmente em razão da ferrugem asiática como já mencionado, no entanto, os demais fatores como clima e oscilação de preços da soja abarcavam conjuntamente às demandas judiciais, sendo imprescindível a manifestação do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema. Sucedeu-se que o Superior Tribunal de Justiça se manifestou sobre o tema pela primeira vez no ano de 2006, emanando decisão sobre os casos de compra e venda de safra futura de soja através do Ministro Ari Pargendler via REsp n.º 722.130/GO na data de 20 de fevereiro de 2006, conforme se verifica em trechos do respectivo Recurso Especial:
“Os autos dão conta de que (produtor rural) e (empresa) celebraram, no ano de 2002, contrato de compra e venda de sacas de soja em grão relativo à safra futura, vinculado a cédula de produto rural. Segundo se extrai da petição inicial, (o produtor rural) formulou pedido de rescisão do contrato de compra e venda, que teria sido assinado sob premente necessidade e por inexperiência e, ainda, sob condições excessivamente onerosas, bem como pedido de nulidade da cédula de produto rural. As instâncias ordinárias prestaram jurisdição completa a respeito deles, embora divergindo brilhantemente sobre os pontos principais da lide. Dois são esses pontos: o do negócio jurídico subjacente e o da emissão da cédula de produto rural.[...] Com efeito, as prestações das partes são desde logo fixadas. A do vendedor consiste na entrega de um certo número de quilos de soja em grãos em uma data futura, em troca de um preço desde logo fixado pelo comprador, ou que será fixado no futuro de acordo com as regras desde logo estabelecidas.[...] o artigo 478 do Código Civil não autoriza o descumprimento do contrato, porque: 1º) o fato que teria alterado o valor das prestações de uma das partes não era extraordinário, mas correntio; 2º) o acontecimento que afetou a prestação de uma das partes não era imprevisível, pelo contrário, era perfeitamente previsível; 3º) não houve prejuízo para o vendedor, que teve no negócio apenas um lucro menor.[...] Voto, por isso, no sentido de conhecer do recurso especial e de lhe dar provimento em parte, para julgar improcedente o pedido de nulidade da compra e venda de safra futura (soja verde), compensadas as custas e os honorários de advogado.” (STJ. REsp: 722130/GO 2005/0017809-0. Terceira Turma. Relator: Ministro Ari Pargendler. DJ 20/02/2006 p. 338)
Continuamente, o Superior Tribunal de Justiça procedeu com nova decisão acerca do assunto no ano de 2007 por meio do REsp n.º 884066/GO, sendo que neste o contrato foi mantido, isto é, foi resguardado o cumprimento contratual conforme verifica-se abaixo:
“[...] As partes celebraram um contrato de compra e venda de sacas de soja, a preço fixo, para entrega futura do produto, não sendo a variação do preço da soja em decorrência da ferrugem asiática motivo para resolução do contrato. O STJ vem recebendo muitos processos onde os produtores de soja buscam romper os contratos celebrados a preço fixo e entrega no futuro, sob o fundamento de onerosidade excessiva, em razão da alta do preço do produto no mercado interno e externo. Recentemente, a Terceira Turma, em voto de minha relatoria (REsp 783.520/GO, julgado em 07.05.2007), decidiu que tal contrato é de risco e que a oscilação do preço de mercado da soja pelos mais variados motivos (enchentes, secas, pragas, falta do produto no mercado, excesso de oferta), não pode ser considerado fato imprevisível ou extraordinário. Dou provimento ao recurso especial, para julgar improcedente o pedido de rescisão contratual e restabelecer a sentença...” (STJ. AgRg no REsp: 884066/GO 2006/0192260-3. Terceira Turma. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ: 06/12/2007. Data de Publicação: 18/12/2007 p. 270)
A partir deste momento, restou evidente que a jurisprudência é manifestamente indicativa à manutenção de tais contratos, tendo em vista que desde logo não considera imprevisível a variação constante dos valores relativos a preço da soja, bem como as variáveis climáticas ou doenças na plantação como a ferrugem asiática, e, consequentemente, tais decisões passaram a integrar cada vez mais os julgados de instâncias iniciais, denominadas a quo. Esta nova orientação jurisprudencial passou a firmar posição em sentido contrário à aplicação da teoria da imprevisão nos contratos de venda futura de soja, vez que após a Corte Superior se manifestar em determinado sentido, é notório que os Tribunais de Justiça dos Estados comecem a analisar os fundamentos considerados, desde que cabíveis aos casos concretos e repetitivos apreciados por estes. A título ilustrativo, visando corroborar com o explanado acima, é possível denotar seus reflexos na ementa de apelação cível julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, conforme disposto abaixo:
EMENTA: RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL. CONTRATOS DE COMPRA E VENDA DE SOJA COM PREÇO PRÉ-FIXADO VINCULADOS A CÉDULAS DE PRODUTO RURAL. ALTA DO DÓLAR. FATO EXTRAORDINÁRIO E IMPREVISÍVEL. NÃO-OCORRÊNCIA. ALEGAÇÃO DE ONEROSIDADE EXCESSIVA. NÃO VERIFICADA. PRETENSÃO DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA IMPREVISÃO. ARTIGO 478 DO CC. IMPOSSIBILIDADE.SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. No contrato de compra e venda de soja com preço pré-fixado para entrega futura, não cabe ao vendedor invocar o aumento posterior do preço do produto como fundamento para a sua resolução, pois este está sujeito às variações do mercado, sendo o risco inerente à própria atividade agrícola, não caracterizando onerosidade excessiva por fatos imprevisíveis a justificar a aplicabilidade da teoria da imprevisão, contemplada no art. 478 do CC. A falta de circulação da Cédula de Produto Rural no mercado, ainda, do pagamento antecipado do produto, não retira sua validade nem deturpa sua finalidade, tendo em vista que não há na lei que a institui qualquer exigência nesse sentido. (TJ-MT. Apelação Cível n.º00547127920088110000. 1ª Câmara de Direito Privado. Relator: Des. Licinio Carpinelli Stefani, DJ: 10/11/2008. Data de Publicação: 24/11/2008)
Por outro lado, há pouco tempo na safra de 2020/2021, voltou a aumentar o número de demandas judiciais ajuizadas visando a resolução contratual, tendo como elemento consubstancial o fenômeno ocasionado pela pandemia mundial da Covid-19, bem como o expressivo aumento no preço da soja ao longo dos anos de 2020 e 2021.Elucidando em números, de acordo com o indicador da soja BM&FBOVESPA, disponibilizado pelo CEPEA3e ESALQ4, tendo como referência o Porto de Paranaguá, a saca da soja em janeiro de 2020 correspondia ao valor de R$ 87,39 (oitenta e sete reais e trinta e nove centavos) ou US$ 21,07 (vinte e um dólares americanos e sete centavos), já no mês de janeiro de 2021 a mesma saca de soja estava correspondendo ao montante de R$ 167,87 (cento e sessenta e sete reais e oitenta e sete centavos) ou US$ 31,33 (trinta e um dólares americanos e trinta e três centavos), isto é, houve uma valorização histórica ao longo destes 12 meses, ensejando discussões judiciais relacionadas a rescisão dos contratos de venda antecipada, sob as justificativas fundidas na alta do preço e na pandemia atravessada.
Neste panorama, importante se faz elencar as decisões e os fundamentos utilizados nos Acórdãos e Decisões Monocráticas dos Tribunais Superiores, apresentando como a jurisprudência vem decidindo de forma semelhante em relação à safra de 2020/2021, que teve como peculiaridade a pandemia desencadeada pelo vírus da Covid-19.De sorte, no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná é possível vislumbrar trecho da Apelação Cível n.º 0000271-27.2021.8.16.0139 na qual o relator menciona:
“(...) Na petição inicial proposta em 12.02.2021, narrou o apelante: que “formulou com a cooperativa ré, em 13.08.2020, um instrumento de contrato de compra e venda de soja, a termo e com preço fixo, onde as partes realizaram a pré-fixação do preço da saca de soja da seguinte forma: 90.000 quilos (1500 sacas) de soja em grãos, safra 2020/2021, para entrega do produto em 31.03.2021 e recebimento do valor pago após a entrega, pelo preço unitário de R$ 105,00 (cento e cinco reais) por saca de 60 quilos, perfazendo o valor total de R$ 157.500,00 (cento e cinquenta e sete mil e quinhentos reais)”; que no decorrer do ano de 2020 ocorreram fatos que ocasionaram um aumento desproporcional dos custos da produção da soja (alta do dólar, a crise sanitária causada pela Pandemia do Coronavirus, aumento do consumo mundial da soja, que acarretou uma elevação imprevisível no preço da saca), de modo que “houve a quebra das bases do contrato firmado entre as partes em razão da desproporção que se instaurou nos custos de produção”.”
Ocorre que, conforme vem sendo decidido ao longo dos últimos anos, os Julgadores consideram a álea inerente à modalidade deste contrato, bem como justificam que as alterações de preços do produto representam riscos a ambas as partes, inclusive conforme dispõe a Ementa do Acórdão em comento, nos seguintes termos:
EMENTA: Ação de rescisão de contrato cumulada com declaratória de cláusulas abusivas com pedido de tutela de urgência. Contrato de compra e venda futura de safra de soja com preço fixo. Sentença que julga improcedente a ação principal e procedente em parte a reconvenção, condenando a autora ao pagamento de multa contratual. Pretensão à rescisão contratual. Contrato aleatório. Variação de preço inerente à natureza contratual. Alterações de preço de produto que representam riscos a ambas as partes. Áleas inerentes à modalidade do contrato. Rescisão descabida. Multa contratual. Percentual elevado dada a natureza do contrato. Manutenção. Recurso conhecido e não provido. (TJ-PR. Apelação Cível: 0000271-27.2021.8.16.0139. 15ª Câmara Cível. Prudentópolis. Relator: Hamilton Mussi Correa, Data de Julgamento: 09/05/2022, 15ª Câmara Cível, Data de Publicação: 09/05/2022)
Em sentido idêntico, é uníssona a jurisprudência pátria no que diz respeito a inviabilidade da revisão nos contratos com entrega futura e preço fixo da soja, deixando de aplicar a teoria da imprevisão ou a onerosidade excessiva na maioria dos casos semelhantes, uma vez que é notável a mutação dos decretos judiciais ao longo dos anos, no sentido de evitar o rompimento das relações contratuais fundamentado nos riscos presentes nas cadeias do agronegócio como um todo, conforme se vê:
EMENTA: APELAÇÃO. COMPRA E VENDA DE SOJA COM PREÇO FIXO PARA ENTREGA FUTURA. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE. AUTORA QUE ASSUMIU CONTRATUALMENTE OS RISCOS NA HIPÓTESE DE CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO.
Insubsistentes as alegações da parte autora para rescisão ou revisão do contrato de compra e venda de soja com preço fixo para entrega futura. Primeiro, porque o art. 187 da CF diz respeito ao planejamento e execução das políticas agrícolas no âmbito governamental, não servindo para garantir judicialmente que sejam afastados os prejuízos da parte autora com a oscilação do preço da soja após a celebração do contrato. Segundo, porque o contrato celebrado entre as partes não autoriza a sua revisão com fundamento na teoria da imprevisão, consoante interpretação do art. 393 do Código Civil (CC). Isso porque o autor-apelante assumiu expressamente no contrato celebrado os riscos decorrentes de caso fortuito e de força maior até a efetiva entrega do produto à compradora. Terceiro, porque em se tratando de contratos agrícolas, as variações dos preços da saca da soja (e consequentemente dos insumos) advindas após a celebração do contrato não evidenciam acontecimentos extraordinários e imprevisíveis com o condão de autorizar a revisão da obrigação com alteração das bases contratuais, conforme entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça. (TJ-SP. Apelação Cível: 1000399-02.2021.8.26.0123. São Paulo. 31ª Câmara de Direito Privado. Relator: Adilson de Araujo. Data de Julgamento: 28/09/2021. Data de Publicação: 28/09/2021)
Referidas condições estabelecidas nos precedentes jurisprudenciais invocados acima, são igualmente constatadas na fundamentação do Agravo de Instrumento nº 0019409-09.2021.8.16.0000 que tramita no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e foi apreciado pelo relator Desembargador Hamilton Mussi Correa na data de 05/07/2021, conforme destacam-se trechos fundamentais:
(...) “Trata-se de agravo de instrumento contra a decisão proferida no mov. 17.1 da ação de rescisão de contrato cumulada com declaratória de cláusulas abusivas com pedido de tutela provisória de urgência, proposta pelo agravante em face da agravada, que indeferiu a tutela de urgência requerida...”(...) “Percebe-se, portanto, que a medida antecipa a tutela jurisdicional pretendida, quais sejam: a) a resolução do negócio e, consequente e obviamente, a liberação para venda da soja por preço de mercado e para quem lhe convier; e b) o reconhecimento da abusividade da multa estipulada no contrato e sua consequente redução”(...) “Não se pode olvidar que o negócio jurídico que se intenta a resolução foi celebrado em 13 de agosto de 2020, ou seja, quando a pandemia de COVID-19 já se encontrava instalada e disseminada, bem como já tendo sido operada todas as suas consequências mais nefastas como restrições severas de locomoção; queda acentuada do Produto Interno Bruto das nações e das bolsas de valores; início de subida da inflação e dos preços das commodities; etc. Portanto, ao contrário do sustentado pelo demandante, não se vislumbra, ao menos em juízo de cognição sumária, que a pandemia e seus efeitos, no momento em que celebrado o negócio jurídico entre as partes, possam ser considerados como extraordinários e imprevisíveis a ponto de ensejar a incidência do disposto no art. 478 do Código Civil.”(...) “Outrossim, a flutuação do preço da soja, para cima ou para baixo, constitui fator corriqueiro e ordinário e, obviamente, leva em consideração fatores intrínsecos e extrínsecos como, por exemplo, demanda e oferta (nacional e internacional), taxas de câmbio, custos de produção, etc. Tanto que a soja é considerada uma commoditie e é negociada em mercado futuro na Bolsa de Valores. Logo, para a celebração de contrato futuro, cujo preço flutua constantemente em virtude de diversos fatores, deve-se levar em consideração fatores ordinários como, por exemplo, a possibilidade de aumento de custo da produção, aumento da demanda e variação cambial, destacando-se, mais uma vez, que à época da celebração do negócio jurídico celebrado nos autos a pandemia já se tinha instalado com todas as suas nefastas consequências, há vários meses, não podendo ser considerado fato imprevisível e extraordinário...”
Destarte, consideradas as premissas aqui descritas, associadas às jurisprudências que são de suma importância para regulação das relações contratuais, quando necessário, foi possível verificar que o Poder Judiciário demonstra nas mais recentes decisões que,cada vez, é mais imprescindível que as partes prezem pelo integral cumprimento dos instrumentos pactuados, especificamente em relação aos componentes da cadeia do agronegócio, na qual as oscilações e os riscos são intrínsecos à atividade. Fato é que levando em consideração os eventos supramencionados, bem como o entendimento dos Tribunais, malgrado não ser tema do presente artigo, surge nova questão que merece guarida: a autotutela, consubstanciada na elevada imputação de penalidades contratuais, como multas no importe de 50% (cinquenta por cento) ou mais, sobre os valores transacionados, estariam a serviço da segurança jurídica ou em descompasso com princípios da boa-fé objetiva e vedação do enriquecimento sem causa, ou, ainda, em abuso de direito? Por fim, malgrado a discussão suscitada no parágrafo anterior, não se dessume que visando a proteção e estabilidade de toda cadeia, não obstante a proteção dos direitos dos contratantes, fato é que a manutenção dos contratos, sem dúvida, possui o condão de garantir segurança jurídica e estabilidade das relações econômicas entres contratantes e terceiros, principalmente pela assunção do duplo risco das relações agrárias inerente à própria atividade desempenhada, sendo imprescindível que as partes prezem pelo integral cumprimento dos contratos pactuados.
Fontes:
Indicador da Soja Esalq/BM&FBOVESPA – Paranaguá. Disponível em:. Acesso em: 01 de mai. 2022,25 de mai. 2022.Dados sobre a chegada da “ferrugem asiática” em 2001 e resultados na safra de 2002/2003. Disponível em: . Acesso em 01 de mai. 2022.Ferrugem 11 asiática" da soja no Brasil: evolução, importância econômica e controle. Disponível em: . Acesso em 01. de mai. 2022, 03 de mai. 2022.Matéria sobre a alta no preço da soja na safra 2003/2004. Disponível em: . Acesso em 01 de mai. 2022.TJMG. Apelação Cível nº 2.0000.00.515102-2/000(1), relator: José Flavio de Almeida. 12ª Câmara Cível. Data de Julgamento: 18 de out. 2005. Disponível em: . Acesso em: 29 de abr. 2022.TJGO. Apelação Cível nº 73079-2/188, relator: Leobino Valente Chaves. 1ª Câmara Cível. Data de Julgamento 22 de mar. 2004. Disponível em: . Acesso em: 03 de mai. 2022.TJGO. Apelação Cível nº 83122-9/188, relator: Almeida Branco. 4ª Câmara Cível. Data de Julgamento: 27 de jan. 2005. Disponível em: . Acesso em: 07 de mai. 2022.TJMG. Apelação Cível nº 1368896-60.2004.8.13.0702, relator: Renato Martins Jacob. 14ª Câmara Cível. Data de Julgamento: 28 de ago. 2008. Disponível em: . Acesso em: 13 de mai. 2022.TJMT. Apelação Cível nº 0054712-79.2008.8.11.0000, relator: Licino Carpinelli Stefani. 1ª Câmara de Direito Privado. Data de Julgamento: 10 de nov. 2008. Disponível em: . Acesso em: 21 de mai. 2022.TJSP. Apelação Cível nº 1000399-02.2021.8.26.0123, relator: Adilson de Araujo. 31ª Câmara de Direito Privado. Data de Julgamento: 28/09/2021. Disponível em: . Acesso em: 21 de mai. 2022.TJPR. Apelação Cível nº 0000271-27.2021.8.16.0139, relator: Hamilton Mussi Correa. 15ª Câmara Cível. Data de Julgamento: 09 de mai. 2022. Disponível em: . Acesso em: 22 de mai. 2022.TJPR. Agravo de Instrumento nº 0019409-09.2021.8.16.0000, relator: Hamilton Mussi Correa. 15ª Câmara Cível. Data de Julgamento: 05 de jul. 2021. Disponível em: . Acesso em: 22 de mai. 2022.STJ. Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental no recurso especial. AgRg no REsp 884066 GO 2006/0192260-3, relator: Humberto Gomes de Barros. Terceira Turma. Data de Julgamento: 15 de dez. 2005. Disponível em . Acesso em 06 de mai. 2022.STJ. Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental no recurso especial. AgRg no REsp 884066 GO 2006/0192260-3, relator: Humberto Gomes de Barros. Terceira Turma. Data de Julgamento: 06 de dez. 2007. Disponível em . Acesso em 07 de mai. 2022
William Martinez e Nathan Matheus
14/06/2022