A função social da terra é um dos pilares do direito agrário brasileiro, consagrada pela Constituição Federal de 1988 e regulamentada por legislações complementares, como a Lei nº 8.629/1993. Esse princípio estabelece que a propriedade rural, além de atender ao interesse privado, deve cumprir objetivos sociais, econômicos e ambientais, harmonizando o direito de propriedade com as demandas coletivas. Entretanto, o Projeto de Lei (PL) 4357/2023, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, propõe a exclusão desse conceito da Lei nº 8.629/1993, o que tem gerado intensos debates sobre os impactos dessa alteração no ordenamento jurídico e na realidade agrária do país.
A função social da terra é respaldada pelo artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal, que condiciona o direito de propriedade ao cumprimento de sua função social, garantindo que seu uso seja benéfico para a coletividade. O artigo 186 especifica os critérios que definem esse cumprimento: o aproveitamento racional e adequado, a utilização sustentável dos recursos naturais, a observância da legislação trabalhista e a promoção do bem-estar social, especialmente para os trabalhadores rurais. A Lei nº 8.629/1993 regulamenta esses preceitos e possibilita a desapropriação de propriedades rurais que não atendam a esses requisitos, destinando-as à reforma agrária. Além disso, o Código Civil, em seu artigo 1.228, §1º, reforça que a propriedade deve atender ao bem-estar coletivo, limitando o uso exclusivo para fins individuais.
O PL 4357/2023 propõe a exclusão do conceito de "função social da terra" da Lei nº 8.629/1993, argumentando que sua aplicação estaria sendo feita de forma subjetiva e ideológica, gerando insegurança jurídica, fomentando invasões de terra e desestimulando investimentos no setor agropecuário. Para seus defensores, a exclusão do conceito traria segurança jurídica aos proprietários rurais, evitando interpretações que dificultam o planejamento econômico e a proteção ao direito de propriedade, previsto no artigo 5º, inciso XXII, da Constituição. Argumentam ainda que a medida incentivaria a eficiência econômica, priorizando a produtividade como principal critério de avaliação do uso da terra, em consonância com o artigo 170, inciso IV, que consagra a livre iniciativa. Outro ponto destacado pelos apoiadores do projeto é que a retirada do conceito combateria o uso do princípio da função social como justificativa para invasões de terras, protegendo a propriedade privada contra atos que consideram ilegais.
Por outro lado, críticos do PL 4357/2023 apontam que sua aprovação seria um retrocesso em termos de justiça social e sustentabilidade. A exclusão do conceito de função social da terra violaria dispositivos constitucionais como o artigo 5º, inciso XXIII, que subordina o direito de propriedade ao interesse coletivo, e o artigo 186, que especifica os critérios para que a propriedade rural cumpra sua função social. Além disso, enfraqueceria as políticas de reforma agrária previstas no artigo 184, dificultando a redistribuição de terras improdutivas e contribuindo para o agravamento da concentração fundiária. Outro impacto relevante seria o comprometimento da preservação ambiental, uma vez que a função social da terra exige a utilização sustentável dos recursos naturais, em conformidade com o artigo 225 da Constituição, que assegura o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Críticos também alertam que o enfraquecimento da função social poderia aumentar os conflitos fundiários, dificultando a democratização do acesso à terra e a implementação de políticas públicas voltadas à agricultura familiar, conforme previsto no artigo 187 da Constituição.
O debate sobre o PL 4357/2023 revela um embate entre visões de mundo: de um lado, a defesa do direito individual de propriedade e da eficiência econômica; de outro, a busca por um modelo agrário mais justo e inclusivo, que promova a equidade social e a sustentabilidade ambiental.
Portanto, a função social da terra, como instrumento jurídico, tem sido fundamental para equilibrar esses interesses, assegurando que a propriedade rural cumpra um papel benéfico para a coletividade. Sua exclusão do ordenamento jurídico pode representar uma ruptura nesse equilíbrio, restringindo o papel do Estado em garantir justiça social e ambiental no campo.
Nesse contexto, a aprovação do PL 4357/2023 pode implicar em mudanças profundas no arcabouço legal que sustenta a política agrária no Brasil. Embora seus defensores apontem para benefícios econômicos e jurídicos, a proposta desconsidera os impactos sociais e ambientais que poderiam decorrer dessa alteração, prejudicando os avanços conquistados nas últimas décadas em termos de reforma agrária e desenvolvimento sustentável.
A controvérsia impõe ao Congresso Nacional o desafio de ponderar esses interesses, considerando os valores constitucionais que estruturam o uso da terra no Brasil. Mais do que uma questão técnica, trata-se de uma escolha de modelo de desenvolvimento e de justiça social, com impactos profundos no presente e no futuro da sociedade brasileira.
Allan Modesto
11/12/2024