As modalidades de garantias fidejussórias,especialmente aval e fiança, são mecanismos de extrema importância para os entes financeiros poderem subsidiar suas concessões de crédito. Em resumo, essas são ferramentas que possibilitam que o credor acesse os ativos de um terceiro garantidor no cenário de inadimplemento do devedor principal.
A recuperação judicial, por sua vez, é um instituto jurídico que visa a preservação da empresa, permitindo que esta se reorganize economicamente e continue suas atividades.
O deferimento da recuperação judicial vem acompanhado da imediata suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor[1],dentre outras medidas. Além disso, se aprovado o plano de soerguimento proposto pelo devedor (ou mesmo nas outras hipóteses inovadoras, como no caso da propositura de um plano por algum credor), todos os créditos existentes,vencidos ou não, são novados e passam a ser pagos de acordo com a execução do referido plano[2].
No entanto, o credor do devedor em recuperação judicial ainda pode se valer da execução de garantias cambial, reais e fidejussórias prestadas por terceiros, conforme a recente alteração trazida pela Lei 14.112 de 2020 à Lei 11.101/05, com a adição do art. 6º-C[3]e reafirmado pela súmula 581[4]do STJ.
Os contratos de M&A[5],especialmente o contrato de compra e venda de participações societárias (usualmente chamado de SPA[6]), vão além do simples objeto, que é a transferência de participações (ações ou quotas) de uma empresa alvo por determinado preço: são carreados de informações sensíveis e estruturados de maneira personalizada para alocar os riscos e as responsabilidades de cada parte para cada operação.
Na maior parte das operações de M&A se nota que os vendedores acabam contribuindo com garantias cruzadas de suas outras empresas, ou até mesmo pessoais, para angariar recursos para a empresa alvo. Por isso, é comum depararmo-nos com a obrigação de o comprador liquidar a operação garantida pelos vendedores em favor da empresa alvo, ou com cláusulas de substituição de garantias inseridas em SPA. Através desta última, o comprador obriga-se a oferecer novas garantias em substituição àquelas que foram prestadas pelo vendedor em favor da empresa alvo.
Agora, com as considerações anteriores em mente, imagine o seguinte cenário: um sócio (vendedor) vende suas participações para um comprador em 10 janeiro de 2021, com a obrigação de este substituir os avais e fianças concedidos pelo vendedor à empresa alvo até 15 de janeiro de 2023. No entanto, em 20 de janeiro de 2024, o comprador e a empresa entram em recuperação judicial sem cumprir essa obrigação. Nesse caso, o vendedor está sujeito à execução dessas garantias. Qual é o remédio jurídico a ser adotado?
Em princípio, entendemos que existem três diferentes perspectivas que podem ser cumuladas: (a) a mora no descumprimento da cláusula de substituição de garantias; (b) o enforcement do cumprimento da cláusula de substituição de garantias; (c) a reparação pelos danos causados em razão das garantias concedidas pelo vendedor para a empresa alvo.
Antes de adentrarmos em cada perspectiva, é fundamental analisar o Tema Repetitivo 1.051 do STJ, que firmou a tese de que “para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador” (destacamos).
Sobre o remédio “(a)” a análise é objetiva: em cotejo com o artigo 397[7]do Código Civil, a mora foi constituída automaticamente a partir do dia 16 de janeiro de 2023. Portanto, os encargos moratórios gerados pelo descumprimento da obrigação durante todo o período de 16 de janeiro de 2023 a 20 de janeiro de 2024 constituem crédito concursal, que deve ser perseguido conforme dispuser o plano de recuperação judicial do comprador.
Por outro lado, o “(b)” enseja maior reflexão (como o artigo de Gerson Branco[8]): a obrigação de substituição de garantias é uma obrigação de fazer, pois a conduta exigida do comprador é (i) a promoção de atos para (ii) a obtenção de um determinado fim (afastar as garantias concedidas pelo vendedor e/ou exonerá-lo de tal ônus). Neste cenário, o mecanismo do artigo 249[9]do Código Civil se mostra inviável, porque, se o vendedor optar por liquidar a obrigação garantida, haveria a sub-rogação do vendedor na posição de um crédito que é concursal e seria ressarcido conforme o plano de recuperação judicial, conforme a decisão mais recente do STJ capitaneada pelo Min. Ricardo Vilas Bôas Cuevas (a propósito, as nossas colegas Marina Serachiani Clemente e Nathalia Nunes aprofundaram esse tema conforme a publicação no Jornal Valor Econômico de 29/10/2024[10]).
Ainda sobre o remédio“(b)”, a propositura de uma ação de obrigação de fazer cumulada com um pedido de fixação de asterintes, como permite o artigo 537[11]do Código de Processo Civil, nos parece ser a ferramenta processual mais adequada, mas, em razão da recuperação judicial, o vendedor pode ter sua pretensão frustrada por uma interpretação equivocada do inciso II[12],artigo 6º, da Lei 11.101 e/ou do princípio da preservação da empresa e do regime do concurso de credores (como no recente julgamento do STJ), especialmente por ser uma obrigação preexistente.
Por fim, para aplicação do remédio “(c)”, entendemos que, em razão de o aperfeiçoamento da cláusula de substituição de garantias depender também da anuência do credor, o caminho do instituto da Promessa de Fato de Terceiro previsto no artigo 439[13]do Código Civil, por analogia, poderia ser seguido. Não obstante, em se tratando de um SPA, há sempre que se observar a existência e a extensão da cláusula de indenidade. Referida disposição versa sobre a obrigação de uma parte indenizar a outra em razão de determinada perda.
Com efeito, à luz da interpretação do Tema 1.051 do STJ, entendemos que todos as perdas incorridas pelo vendedor a partir de 20 de janeiro de 2024 constituem crédito extraconcursal, eis que a ocorrência da perda (também chamado de “efeito caixa” no contexto das operaçõesde M&A) constitui o fato gerador para a indenização.
Dessa forma, entendemos que o vendedor: i) de certa maneira, tem sua pretensão frustrada em relação aos encargos moratórios, na medida em que o item “(a)” se sujeita aos efeitos do plano de recuperação judicial que pode sofrer deságio e ser quitado em um lapso temporal longínquo; ii) deve promover quanto antes a medida cabível para perseguir o adimplemento da obrigação de substituição de garantias, ainda que sujeito às frustrações permeadas pelo procedimento de recuperação judicial do comprador; e iii) na medida em que a ineficácia da obrigação atinja o seu patrimônio ocasionando um efeito caixa, perseguir a imediata reparação sob o manto do inadimplemento contratual, e, se houver da cláusula de indenidade (desde que o respectivo conceito de “perdas” definido no SPA seja aplicável à respectiva obrigação), em face do comprador pela natureza extraconcursal do crédito que possui.
Em conclusão, a cláusula de substituição de garantias desempenha um papel crucial na proteção dos interesses do vendedor contra os riscos associados ao inadimplemento do comprador, especialmente se acompanhada de uma obrigação de indenidade com garantia de alienação, cessão fiduciária, cédula de produto rural com entrega física, dentre outras.
Portanto, ao negociar e redigir contratos de M&A, é essencial que as partes, especialmente os vendedores assegurem a inclusão de cláusulas de indenidade bem detalhadas e a concessão de garantias adequadas. Isso não só mitiga os riscos envolvidos, mas também fortalece a posição do vendedor em eventuais situações de recuperação judicial, garantindo que os seus direitos e interesses sejam devidamente protegidos e resguardados.
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[1] Lei 11.101/2005:
“Art. 6º A decretação da falência ouo deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
[...]
II - suspensão das execuções ajuizadascontra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sóciosolidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicialou à falência;
III - proibição de qualquer forma deretenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicialou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ouextrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicialou à falência.
[...]
§ 4º Na recuperação judicial, assuspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput desteartigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado dodeferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, umaúnica vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido coma superação do lapso temporal.”
[2] Nesse sentido, a Lei11.101/2005 dispõe, através do art. 59, que: “o plano de recuperaçãojudicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedore todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado odisposto no § 1º do art. 50 desta Lei”.
[3] Art. 6º-C. É vedadaatribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do meroinadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial,ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, bem como as demais hipótesesreguladas por esta Lei.
[4] A recuperação judicialdo devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuçõesajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, porgarantia cambial, real ou fidejussória.
[5] Sigla usual para fazerreferência ao termo inglês “Mergers and Acquisitions”, ou “Fusões eAquisições” em português.
[6] Sigla que faz referênciaa “Share Purchase Agreement” (ou, em português, “Contrato de Compra e Venda deAções”).
[7] Art. 397. Oinadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui depleno direito em mora o devedor.
[8] BRANCO, Gerson. ACláusula de Substituição de Garantias. In: VON ADAMEK, Marcelo Vieira ePEREIRA, Rafael Setoguti J. Fusões e Aquisições (M&A). São Paulo: QuartierLatin do Brasil, 2022.
[9] Art. 249. Se o fatopuder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar àcusta do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenizaçãocabível.
[10] CLEMENTE, MarinaSerachiani; NUNES, Nathalia. Nova posição do STJ sobre cartas de fiança. ValorEconômico, 29 out. 2024. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/nova-posicao-do-stj-sobre-cartas-de-fianca.ghtml.Acesso em: 21 nov. 2024.
[11] Art. 537. A multaindepende de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase deconhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução,desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazorazoável para cumprimento do preceito.
[12] Art. 6º A decretaçãoda falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
II - suspensão dasexecuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credoresparticulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos àrecuperação judicial ou à falência;
[13] Art. 439. Aquele quetiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este onão executar.
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16/01/2025
Felipe Lopes Maddarena é advogado, bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino. Cursando Master of Laws - L.L.M em Direito Dos Mercados Financeiro e De Capitais pelo Insper. Pós-graduado em Direito Empresarial e extensão em Direito Societário, com especialização em Direito do Agronegócio pela PUC/PR. Experiente em disputas de alta complexidade. Atuando em Fusões e Aquisições (M&A), operações financeiras estruturadas e reorganizações societárias para toda a cadeia produtiva agroindustrial. Associado sênior do escritório Martinez & Associados.
William Matheus Martinez é advogado, pós-graduado em Direito Corporativo pela Escola Paulista do Direito, MBA Agronegócio pela ESALQ/USP, L.L.M. em Direito Societário pelo Insper, Especialista em Mediação e Arbitragem pela FGV/SP, e em Fusões e Aquisições (M&A) pela Columbia University. Mestrando em Agronegócio pela ESALQ/USP. Ex-executivo Jurídico atuante em indústria de grande porte no ramo do Agronegócio. Sócio do escritório Martinez & Associados.